30 Anos do Código de Defesa do Consumidor: evolução e novos desafios

Artigos - José Geraldo Brito Filomeno

            Antes de tratarmos da relevante efeméride que festejamos no corrente ano, é mister que tracemos um retrospecto histórico, ainda que breve, do antigo CNDC – Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, instituído pelo Decreto Federal nº 91.469. de 24-7-1985 e revisto pelo Decreto Federal nº 94.508, de 23-6-1987. Acabou sendo extinto em 1990, tão logo assumiu a Presidência da República o hoje senador Fernando Collor de Mello.

            Cumpria-lhe, em suma, “assessorar o Presidente da República na formulação e condução da política nacional de defesa do consumidor, bem como zelar pelos direitos e interesses dos consumidores”. Antes dele eram de vital importância, e ainda o são, os “Encontros Nacionais das Entidades (públicas e privadas) de Defesa do Consumidor”, o primeiro deles realizado em na Capital de São Pau, em novembro de 1983.

            Tinha a competência de: I – representar aos Ministérios Públicos para providências no âmbito de suas atuações; II – solicitar à Polícia Federal a instauração de inquéritos policiais pertinentes à tutela do consumidor; III – recomendar providências a órgãos públicos que exercem funções de polícia administrativa; IV – propor fusão de órgãos e entidades de defesa do consumidor, quando pertinente; V – celebrar convênios com universidades e outros órgãos públicos e entidades privadas visando ao intercâmbio de informações e atuação conjunta; VI – coordenar atividades das entidades de defesa e proteção do consumidor; e VII – emprestar apoio às instituições congêneres e  sua manutenção de entidades etc. 

            O antigo CNDC, à falta de Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, instituído pelos arts. 105 e 106 do Código de Defesa do Consumidor, fazia as vezes também de um órgão de execução, como se fosse um PROCON Federal. Ou seja, e por exemplo, no recebimento de representações e reclamações de cidadãos/consumidores, bem como solicitações de orientações das entidades, em forma de consultas de como encaminhar reclamações. Nesses casos era designado um relator da questão suscitada e, apresentada sua apreciação, a sugestão dele constante era submetida ao plenário (ex.: encaminhamento ao Ministério Público, Polícias, federal ou estaduais, órgãos públicos, proposta de resolução aos fornecedores reclamados etc.).

            Compunha-se o antigo CNDC: 5 representantes do governo federal (Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Saúde, da Agricultura, da Indústria e Comércio); 1 da OAB; 1 dos Ministérios Públicos; 3 representantes das entidades públicas de defesa do consumidor; 3 das entidades civis; 1 do CONAR – Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária; 3 representantes das confederações empresariais (CNI, CNC e CNA).

            Embora existente antes do Código de Defesa do Consumidor, buscava-se, primordialmente, conceder a palavra e voz aos setores públicos, da sociedade civil e dos fornecedores.

            Ou seja, dando cobro já ao que viria a estabelecer o art. 4º, III, do CDC, que fala precisamente da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da C.F.), sempre com base na boa-fé e equilíbrio na relações entre consumidores e fornecedores. Estes, aliás, participaram ativamente das reuniões e discussões colocadas em pauta e, sobretudo, ao ensejo dos trabalhos da comissão que elaborou o anteprojeto do vigente Código de Defesa do Consumidor.

             Indubitavelmente a maior conquista desse antigo CNDC foi a ideia da obra que ora comentamos.

            E, com efeito, há 30 anos, mais precisamente em 11-9-1990, era sancionada a Lei nº 8.078, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, entrando em vigor 6 meses depois

            Ao contrário do que muitos possam pensar, não se tratava nem de uma novidade no cenário jurídico, nem de uma panaceia para todos os males que afligem todos nós, afinal de contas, consumidores de bens e serviços a todo instante de nossas vidas. 

            Com efeito, quando a comissão elaboradora, foi designada em junho de 1988, pelo então Ministro da Justiça Paulo Brossard, por proposta do referido Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, a tarefa se nos apresentou como sendo de grande responsabilidade. Todavia, não cuidamos de reinventar a roda. 

            Até porque outros países já dispunham de leis de proteção ou defesa do consumidor (e.g., Espanha, Portugal, Canadá, Estados Unidos, Venezuela, México etc.). Além disso, a então IOCU – International Organization of Consumer Unions (hoje CI – Consumer´s  International), já atuava de maneira bastante abrangente no sentido de fazer valer a tutela dos consumidores no âmbito global.

            Destarte, baseando-nos naquelas leis já existentes, bem como na Resolução ONU 39/248, de 1985, atualizada em 2015 e que, por sua vez, se fundava em célebre declaração do presidente norte-americano John Kennedy, de 15-3-1962, a respeito dos direitos básicos e fundamentais dos consumidores (saúde, segurança, indenização por danos sofridos, informação, educação e associação), em junho de 1988 começamos a elaborar o nosso anteprojeto. 

            Digna de nota, igualmente, foi a assim chamada lei-tipo. Ou seja: um modelo de lei de proteção e defesa do consumidor aprovado em Montevidéu, em 1987, ao ensejo da realização da II Conferência Latino-Americana e do Caribe de Direito do Consumidor. Nesse modelo, em forma de enxuta minuta de lei, recomendou-se aos países filiados à ONU, guardadas as respectivas peculiaridades, que elaborassem suas próprias leis de defesa ou proteção do consumidor. 

            O clima em nosso país, na época, era extremamente propício: a Assembleia Nacional Constituinte estava reunida em Brasília e havia até mesmo um anteprojeto ou esboço preliminar de Constituição, elaborada pelo saudoso senador Afonso Arinos de Mello Franco. 

            Desta forma, a comissão incumbida da elaboração do anteprojeto do código do consumidor trabalhou em duas frentes: na Constituinte, assegurando-se de que a defesa do consumidor fosse elevada, como de resto o foi, à categoria de direito fundamental, de cunho individual e social (cf. inciso XXXII do art. 32 da Constituição de 88); e, por outro lado, nos trabalhos do anteprojeto propriamente dito, que foi elaborado em tempo recorde. Ou seja, já em novembro de 1988, o anteprojeto estava pronto, e foi publicado em 4-1-1989 no Diário Oficial da União, em caderno especial, para amplo conhecimento, e para que ainda fossem colhidas sugestões do povo em geral. Sugestões essas, aliás, que efetivamente foram recebidas, cuidadosamente analisadas e muitas delas acolhidas. 

            Importante salientar, por outro lado, que a comissão, constituída pela saudosa Profª. Ada Pellegrini Grinover, como sua presidente, pelo então Procurador de Justiça e Coordenador das Promotorias de Justiça do Estado de S. Paulo, José Geraldo Brito Filomeno, a qualidade de vice-presidente e relator-geral, pelo Procurador do Estado Dr. Zelmo Denari, pelo Desembargador Kazuo Watanabe, e pelos então Promotores de Justiça Antônio Hermen de Vasconcellos e Benjamim e Daniel Roberto Fink, à época Diretor do PROCON-SP, fazia relatórios periódicos ao CNDC, reunido mensalmente em Brasília.

            Após os trâmites legislativos, finalmente veio a lume, com algumas vetos que, contudo, não afetaram os principais pontos do anteprojeto, o código que hoje conhecemos. 

            A segunda questão com que abrimos esta obra coletiva diz respeito às limitações do próprio código. Ou seja: ele deve ser entendido como um microssistema jurídico, com princípios próprios, mas de natureza multi e interdisciplinar. 

            Como princípio próprio e basilar poderíamos citar, fundamentalmente, o da vulnerabilidade. Isto é, o consumidor, não tendo condições de conhecer técnica ou faticamente os produtos e serviços que são colocados à sua disposição no mercado, ou as circunstâncias em que isso se dá, arrisca-se a experimentar todo tipo de risco e efetivos danos à sua saúde, segurança, economia particular, e até mesmo à sua dignidade. Por exemplo: quando adquire um medicamento cujo fator-risco é muito maior do que o fator-benefício; ou então uma máquina ou veículo que tem um defeito de fabricação; ou mesmo quando adere a um contrato bancário ou tem um cartão de crédito clonado, em que se vê ameaçado de ter seu nome encaminhado a um banco de dados e negativado. 

            Por isso mesmo, cuidando-se, de desiguais de um lado ---consumidores --, e fornecedores de produtos e serviços, de outro ---, o código cuidou de tratá-los, certamente, de forma desigual. Daí se falar, por exemplo, da inversão do ônus da prova, no processo civil, da responsabilidade civil objetiva ou sem culpa, da interpretação de cláusulas contratuais mais favoravelmente aos consumidores, e outras salvaguardas. Seguem-se, ainda, os princípios da boa-fé e do equilíbrio que devem sempre, à luz da ética, presidir toda e qualquer relação jurídica. 

            Com efeito, cuida-se de exigir que as partes contratantes ajam com seriedade, honestidade, espírito de cooperação, bons propósitos, enfim, para que, da melhor forma possível, de possa atingir a tão almejada harmonia que deve sempre inspirar os negócios jurídicos. E isto sobretudo, repita-se, no que concerne a personagens tão desiguais. Esta, em apertadíssima síntese, é a epistemologia do código do consumidor. 

            Por outro lado, entretanto, o código é multidisciplinar, na medida em que contém preceitos de ordem civil (por exemplo, a já mencionada responsabilidade civil objetiva, a tutela contratual, incluídas aí a oferta e a publicidade, práticas de comércio etc.), outros de caráter penal (ou seja, crimes contra as relações de consumo), e ainda de cunho administrativo (sanções nos casos em que especifica), processual (a tutela coletiva, sobretudo), além de outras particularidades. Entretanto, não se basta. Necessita, muitas vezes, conforme adverte seu artigo 7º, de outras normas já pré-existentes, a começar pela Constituição Federal, de normas de caráter civil, processual, administrativo e outras, além de, inclusive, tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. 

            No que concerne a um balanço de aplicação do código, o próprio título deste artigo, dir-se-ia que se cuida de uma lei que já conta com 30 anos de existência, mas que certamente ainda necessita de muito amadurecimento. 

            E esse amadurecimento depende, em grande parte da educação formal e informal dos próprios consumidores (i.e., desde a tenra idade escolar com noções de cidadania-consumidor-ambiente, até o ensino universitário, e das atividades informativas dos órgãos públicos, entidades não-governamentais de direitos do consumidor e, igualmente, dos órgãos de comunicação social). 

            Igualmente é essencial a educação e informação dos fornecedores de modo geral, mediante o incremento dos bons serviços de atendimento ao consumidor, aprimoramento das técnicas de qualidade de produtos e na prestação de serviços, sobretudo, prevenção de acidentes de consumo pelo recall e outros instrumentos disponíveis).  

            Parece-nos, outrossim, fundamental a desjudicialização dos conflitos entre consumidores e fornecedores ---- hoje contam-se aos milhões país afora ---, por meio de meios eficazes de sua resolução --- pelo efetivo atendimento pelas próprias empresas, mediação e conciliação informal. 

            Nesse sentido afigura-se fundamental, mais do que nunca, a atuação dos Serviços de Atendimento ao Consumidor (SAC`s) e Ouvidorias das empresas.    

            E, finalmente, incumbe às autoridades federais, estaduais e municipais, estabelecerem instrumentos eficazes de fiscalização do mercado de consumo, sobretudo, as agências reguladoras, já que um dos objetivos de sua existência é precisamente o atendimento dos usuários dos serviços públicos essenciais. 

            Enfim: o código existe há 30 anos, está em vigor efetivo há 29. E nesse tempo houve melhorias, sem dúvida, no mercado, mas muita coisa ainda há por ser feita, principalmente, no que diz respeito à atuação dos chamados instrumentos de efetividade da política nacional de relações de consumo, aí incluídos, além dos órgãos precípuos de defesa ou direito do consumidor (como o recém recriado CNDC – Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, a SENACON – Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, o DPDC – Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, os PROCON´s) e os não-governamentais (como o IDEC e o PRO TESTE, e o CONAR, por exemplo), as Promotorias de Justiça do Consumidor, os Juizados Especiais Cíveis, as Varas Especializadas em Direitos e Interesses Difusos e Coletivos, as Polícias Especializadas, enfim, todo o arcabouço existente na tutela, afinal de contas do consumidor: na verdade todos nós, sem exceção. 

 

JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO

Advogado, professor especialista em Direito do consumidor e Consultor da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor da OAB-SP

 Ex-Vice-Presidente e Relator-Geral da Comissão elaboradora do Anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor

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