Superendividamento e sua regulamentação: agora sim, uma necessidade.

Artigos - José Geraldo Brito Filomeno

            O preocupante fenômeno do chamado “superendividamento”, agravado entre nós pela persistente crise econômica que nos afeta há alguns anos, com 13 milhões de desempregados e mais de 40% de devedores inadimplentes, fez com que alguns órgãos públicos, do executivo (PROCON´s, por exemplo) e do judiciário (Juizados Especiais), além de instituições de agentes econômicos (SERASA, SPC e CDHL e outros), adotassem providências práticas no sentido de trata-lo. Se não suas causas, certamente bastante complexas e na dependência de uma melhora no nosso panorama econômico, pelo menos suas consequências e propiciando um certo conforto aos milhões de devedores.

            Ou seja, quer adotando, nos dois primeiros casos, procedimentos de cunho administrativo ou judicial, quer, no caso dos demais, os chamados “mutirões de acordos”.

            Por superendividamento, de forma bastante simples, entende-se as circunstâncias pelas quais uma pessoa física encontra-se numa situação aflitiva de dívidas acumuladas sem possibilidade de saldá-las sem forte prejuízo à própria sobrevivência e de seus familiares. 

            Há dois tipos de superndividamento: Conceitos e tipos – O chamado superendividamento caracteriza-se pela impossibilidade manifestada pelo devedor de boa-fé de fazer frente ao conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e não pagas. Ou seja, dívidas contraídas no afã de adquirir produtos ou contratar serviços como destinatário final pelo consumidor, levando-o a uma insolvência civil.

            Há, em regra, dois tipos de devedor superendividado: a) ativo – quando ele próprio  contribui decisivamente para se colocar nessa situação de consumista, muitas das vezes até compulsivamente (consome mais do que pode e efetivamente necessita); b) passivo – quando ao revés, vê-se na situação de insolvência por fato superveniente aos contratos de consumo por ele firmados (desemprego, doença ou morte em família, por exemplo).

            Podemos apontar como causas externas do consumismo, de maneira bastante sintética, a oferta ou publicidade massiva e abusiva e a criação de necessidades artificiais.

            É bastante elucidativa nesse particular uma oferta publicitária veiculada pela TV e pela internet e de responsabilidade de uma instituição de crédito, onde se apregoa, pura e simplesmente, que o empréstimo de qualquer quantia para qualquer mutuário está disponível, mesmo que ele tenha problemas com bancos de dados negativos: "Agilidade e segurança na liberação do crédito. Sem consulta aos órgãos de proteção ao crédito”[1]. 

          E, embora haja normas e recomendações, sobretudo, para o chamado crédito consignado, as maiores vítimas do superendividamento, notadamente pessoas aposentadas e idosos, ou seja, no sentido de não comprometerem mais de 30% do que percebem na obtenção de crédito, não é isso que tem acontecido.

Em matéria do abuso em ofertas e publicidades abusivas, trazemos à colação as ponderações de MARTIN LINDSTROM, em sua impressionante obra crítica sobre as várias técnicas de marketing, o que surpreende, até porque se cuida de um dos maiores especialistas e consultores nessa matéria no mundo[2], tendo como clientes as maiores corporações industriais e comerciais. 

Com efeito:

Consumismo gera ProtestosNa Inglaterra, existe um movimento anticonsumo chamado Enough (´Basta´). Seus simpatizantes acreditam que consumismos demais e que essa cultura exagerada têm grande parcela de responsabilidade por vários males que afligem o planeta --- da miséria à destruição do meio ambiente e à alienação social. A corrente estimula as pessoas a se perguntarem: Preciso mesmo disso?; Como viver com mais simplicidade e menos consumo?; Como me livrar da necessidade de comprar coisas para me sentir bem? Concordo plenamente com essa iniciativa. Posso ser um profissional de marketing, mas também sou consumidor”.

E mais adiante:

Abstinência de Consumo e Identidade como Consumidor – No ano passado, resolvi passar por uma desintoxicação de marcas, uma espécie de abstinência de consumo. Decidi não comprar nenhuma marca durante um ano. A proposta era usar o que eu já tivesse --- roupas, telefone celular e outros itens ---, mas sem adquirir nenhuma outra marca. O que eu chamo de ´marca´? Minha profissão me equipou com uma lente especial, que vê quase tudo existente na Terra como marca --- de celulares a computadores, de relógios a roupas, de filmes a livros, de comida a celebridades, e até mesmo meu time favorito. Trata-se de um tipo de identidade, de uma declaração sobre quem somos ou gostaríamos de ser. Em resumo, no atual mundo dominado pelo marketing e pela publicidade, é impossível escapar delas.[3] 

          Calcula-se que hoje, em nosso país, haja mais de 50 milhões de superendividados dentre a população economicamente ativa, embora inexistente uma pesquisa segura a esse respeito, fenômeno esse constatado entre nós num curto período, quando multidões de consumidores se viram, repentinamente, aquinhoados com um ganho maior e uma pseudo segurança para consumir além do razoável e até necessário.

          Resta evidenciado, com efeito, que nos dias que correm as famílias, em decorrência da evidente crise que assola nosso país, em que grassa o desemprego, a inflação, redução do poder aquisitivo e os péssimos índices de qualidade de vida, têm comprometido mais penosamente seus ganhos corroídos e mais difíceis de manter[4].

          Vê-se pela coluna da esquerda, o quão longo e penoso é o procedimento previsto ainda em vigor em termos de processo civil, para o superendividado (rectius devedor insolvente). Em quase 50 anos de vivência com o Direito, somente vimos 2 casos de insolvência civil, ao lado certamente de diversas de falência comercial propriamente dita. Complidado procedimento: Título VI – Da Execução por Quantia Certa contra Devedor Insolvente – arts. 748 a 786-A do CPC/1973.

            Portanto, enquanto não sobrevier a alvitrada regulamentação da insolvência civil, que nada mais é do que chamamos de incidente de superendividamento, continuarão a coexistir os artigos 748 a 786-A do Código de Processo Civil de 1973 e procedimentos mais simplificados adotados, como visto, por alguns órgãos do Poder Judiciário, como Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e outros, mediante provimentos e convênios com os PROCON´s, por estes mesmos e entidades não governamentais, em negociações com vistas ao atendimento e socorro aos superendividados. 

            Cremos, com efeito, que como o dispositivo citado da vigente lei processual civil fala em previsão das execuções contra devedor insolvente em lei específica, o Código de Defesa do Consumidor talvez seja, realmente, mas somente agora, o lugar mais adequado para tanto. 

            Até porque para os devedor não-consumidor, ou seja, fornecedor de produtos e serviços, há os procedimentos próprios da falência e recuperação judicial.

            E para tanto bastaria a inserção de emenda ao projeto em trâmite na Câmara dos Deputados, para declarar finalmente revogados os dispositivos mencionados do antigo Código de Processo Civil.

 

8 Fonte: www.crefisa.com.br/produtos/credito-pessoal

[2] Brandwashed: o lado oculto do marketing – controlamos o que compramos ou são as empresas que escolhem por nós? HSM Ed., SP,1ª ed., 2012, p. 17.

[3] Ob. cit., pág. 18.

[4]SUPERENVIDAMENTO E O PIB - Fonte: Folha de S. Paulo, edição de 6-7-2011, pág. B-4 VINICIUS TORRES FREIRE: “O BRASILEIRO está superendividado? A pergunta se tornou assunto na mídia econômica do mundo. A opinião mais ´pop´ e frequente diz que sim. Os mais alarmistas, em geral mais ignorantes do Brasil, acreditam que a parte da renda dedicada ao pagamento dos empréstimos teria chegado a um nível semelhante ao de países que viveram estouro de bolhas de crédito. Antes de mais nada, note-se que os dados disponíveis para comparações internacionais sobre o peso da dívida na renda das famílias são precários. Mesmo que as metodologias sejam ajustadas, ainda assim é preciso comparar contextos (evolução de renda, prazos e juros das dívidas, se as taxas de juros são flutuantes ou fixas etc.). Em seguida, observem-se dados menos incertos. O total da dívida em relação ao PIB é de 54% no Brasil. No vizinho Chile, 98%; na China, 112%; nos EUA, 203%; no Reino Unido, 214% (inclui dinheiro captado no mercado de capitais doméstico, dados do Banco Mundial, tirados de estudo do banco HSBC). O endividamento das famílias (´pessoa física´) é de 42% da renda líquida no Brasil, segundo dados da OCDE, apresentados ontem no Congresso pelo presidente do Banco Central, Alexandre Trombini. Nos EUA, é de 104%; no Japão, 126%; no Reino Unido, 171%. A medida mais precisa para avaliar o endividamento das famílias, seria o peso da dívida: a parcela da renda mensal dedicada ao pagamento de juros e principal. A depender do método, a média brasileira estaria entre 20% e 30%. Fora dos bancos, inexiste informação sobre a distribuição da dívida: quanta gente está mais endividada do que a média. Um estudo do HSBC, junho passado, resume assim a situação: 1) O Brasil vive um boom, não uma bolha de crédito – o total do crédito em relação ao tamanho da economia (estoque de crédito-PIB) cresceu rápido, mas era e ainda é baixa; 2) O perfil da dívida das famílias tem melhorado desde 2004. As taxas de juros são cadentes, o crédito migra para modalidade mais seguras e baratas (imóveis, consignado, veículos, em vez de cartão de crédito e cheque especial); 3) Medidas macroprudenciais limitaram a aceleração do endividamento (mais exigências de capital bancário, limitações de prazos, mais exigência de pagamento da dívida do cartão etc.); 4) A renda das famílias está crescendo; 5) A dívida está mais pesada para as famílias, ´mas longe de ser uma situação alarmante nos níveis atuais. ´Desde que os salários cresçam no ritmo da inflação, não se espera nenhuma deterioração além do movimento cíclico´ (decorrente de altas e baixas de juros, em suma do crescimento do PIB).Note-se, de resto, que para o bem ou para o mal faltam ou são raros no Brasil os instrumentos financeiros que permitem alavancagem excessiva de dívida; inexistem securitizações malucas e em massa de dívida bancária. A regulação bancária do país é forte (a capitalização dos bancos está acima da média global). Enfim, há muita provisão nos bancos para créditos duvidosos --- a banca é conservadora no crédito ao consumidor (ou parece ser, segundo os dados disponíveis no Banco Central)”.

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