A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA DO ESTATUTO DO TORCEDOR

Artigos - Ricardo de Moraes Cabezón

PALAVRAS-CHAVE: DIREITOS DO TORCEDOR. ESTATUTO DO TORCEDOR. LEI Nº. 10.671/03. CÓDIGO DO CONSUMIDOR NO DESPORTO. RELAÇÃO DE CONSUMO DESPORTIVA. EDT.

 

No terceiro ano do novo milênio a esperança de novos tempos no desporto surgiu no sistema jurídico com o advento da Lei nº. 10.671, o famigerado Estatuto do Torcedor.

Em meio a um clima de palmas e vaias, mais parecido com o de uma final de campeonato, o Estatuto foi promulgado com a missão de renovar os espetáculos desportivos e, em especial, o futebol.

Pouquíssimo divulgado e obedecido, 14 anos após o seu advento, continuamos encontrando fortes resistências à implementação de suas diretrizes.

Porém um dos piores e mais duros golpes ocorreu nos idos de 2014 protagonizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), como também por sua corte máxima, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD), no episódio que envolveu o rebaixamento da Associação Portuguesa de Desportos e a permanência do Fluminense Football Club no grupo “A” do Campeonato Brasileiro.

Usaremos o nome das Associações Desportivas tão somente para explicar o episódio sem adentrarmos ao mérito da questão, a qual se tornou um escandaloso caso de polícia, para que, ao final, possamos realizar uma análise dos seus reflexos junto àquele que é um dos marcos da relação consumerista no desporto, qual seja, o Estatuto do Torcedor, Lei nº. 10.671/03.

No caso em comento o imbróglio, que se iniciou em 2013 e se arrastou pelo primeiro semestre de 2014, girou em torno de uma pseudo escalação irregular de um jogador do elenco da Associação Portuguesa de Desportos, Héverton, que segundo a CBF estaria supostamente cumprindo pena de suspensão em virtude de uma falta cometida em jogo pretérito contra o Esporte Clube Bahia no dia 06/12/13 válido pela 36ª rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol da Série A de 2013.

 

Supostamente, pois por força da aplicação dos artigos 34 e 35 do EDT a decisão de suspensão do atleta não fora publicada na imprensa, hipótese obrigatória que a lei deixa extremamente clara empregando a seguinte redação:

“Art. 34. É direito do torcedor que os órgãos da Justiça Desportiva, no exercício de suas funções, observem os princípios da impessoalidade, da moralidade, da celeridade, da publicidade e da independência.”

 

“Art. 35. As decisões proferidas pelos órgãos da Justiça Desportiva devem ser, em qualquer hipótese, motivadas e ter a mesma publicidade que as decisões dos tribunais federais.” (destaque nosso)

 

Consequentemente por ser o Estatuto uma Lei Federal a imposição legal do referido dispositivo exige mais do que uma mera publicidade do ato decisório da lavra da instância desportiva. 

 

Trata-se, de forma indesmentível, do reconhecimento de que uma decisão (judicial ou administrativa) tem uma condição básica de eficácia: a sua publicação, logo independentemente de estarmos no âmbito da Justiça Desportiva temos que lembrar que suas regras e disposições não podem ser aplicadas de forma desassociada a todos os ordenamentos de nosso sistema Jurídico, v.g. Constituição Federal, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto de Defesa do Torcedor etc, portanto uma decisão, pelo que dispõe a lei, só surtirá efeitos após sua publicação.

 

Malgrado esse não foi o entendimento esposado pela alta corte do Desporto Futebolístico, a qual não só rechaçou o argumento acima, como também de forma autoritária simplesmente IGNOROU o disposto na lei, se valendo de argumentos endonistas que procuravam demonstrar que a administração do Desporto é blindada, nela se aplicando apenas legislações e entendimentos que forem convenientes à tese que se decide acatar.

 

Nesse esteio emanaram censuráveis posicionamentos verbais e escritos, não pelo mérito em si, pois casuísticas no Direito são por si só discutíveis e nessa luta apaixonada de argumentos/debates reside sua grandiosidade e nobreza, mas pela forma debochada e depreciativa utilizada por alguns membros do STJD ao se referirem tanto à eficácia do Estatuto de Defesa do Torcedor, quanto aos advogados que patrocinavam a causa e que nele embasados ousaram sustentar algo que, aos olhos dos julgadores ensejava uma atrevida “aventura” jurídica.  

 

Vejamos alguns trechos do voto oriundo do julgamento do Processo nº 320/2013 que tramitou perante o STJD: 

 

“O Estatuto do Torcedor protege e defende os interesses jurídicos do torcedor, enquanto o CBJD se refere à Justiça Desportiva brasileira e ao processo desportivo, além de prever infrações disciplinares e suas sanções.

 

(...)

 

Na verdade, quando o artigo 1º do CBJD, refere-se à fundamentação legal, o faz com fulcro na Lei federal 9.615/98, nacionalmente conhecida como Lei Pelé.

 

E é esta mesma Lei Pelé, que em seu artigo 49, prevê o seguinte:

 

“A Justiça Desportiva a que se referem os §§ 1o e 2o do art. 217 da Constituição Federal e o art. 33 da Lei no 8.028, de 12 de abril de 1990, regula-se pelas disposições deste Capítulo.”

 

(...)

 

Amplio um pouco mais a discussão apenas para demonstrar que a confusão que se tenta fazer ultrapassa os limites da razoabilidade. Isto porque, o artigo 133 do nosso bravo CBJD em nada se confunde com os artigos 35 e 36 do estatuto do torcedor.

 

O artigo 133 é de clareza solar quanto à intimação das decisões, enquanto os artigos do Estatuto do Torcedor, que, comprovadamente não se sobrepõe ao CBJD, tratam da publicidade das decisões.

 

Enfim, por qualquer ângulo que se analise a questão não há dúvidas de que a legislação aplicada neste caso é correta, bem como os artigos que fundamentaram a denúncia da Procuradoria, e a decisão de primeiro grau.

 

(...)

 

O Estatuto do Torcedor, diferente do CBJD e da Lei Pelé, não possui qualquer ligação com as partes do processo desportivo, ...”

 

De tal postura e tratamento podemos depreender que desejam transformar o Direito Desportivo em um ramo para poucos afortunados que só podem agir ou pensar embasados no que no que seus pares professam. Em outras palavras desejam torná-lo um ramo diferente de tudo o que vemos e estudamos na graduação em Direito, ou seja, em um modelo incomunicável e autossuficiente! Raciocínio esse que além de estar plenamente superado há décadas, se revela equivocado por vilipendiar toda a evolução, conquistas e garantias no âmbito jurídico.

 

No sentido contrário, e apenas pelo amor ao debate, cabe lembrar que o advento do Estatuto do Torcedor submeteu as entidades organizadoras do desporto, bem como os clubes e agremiações a elas atreladas a uma verdadeira revolução visando maior respeito e proteção ao torcedor, como também transparência e organização, cite-se a obrigatoriedade de contratação de seguro para os torcedores, publicidade das decisões de suas cortes, demonstração dos borderôs da partida, ciência do regulamento da competição, inserção do ouvidor na partida e outras preconizações que paulatinamente são implementadas.

 

Não é para menos.

 

Lembremos que o Desporto é um direito fundamental de todo cidadão inserido no rol do artigo 6º. da CF, que por assim ser não fica restrito às relações privadas entre os clubes e a entidade organizadora da competição, mesmo porque é tema da Ordem Social Brasileira, que pelo artigo 193 da Carta Magna, tem por objetivo o bem-estar e a justiça social.

 

Nesse diapasão encontramos a Justiça Desportiva com a incumbência de proferir decisão final do processo, o que apesar de se apresentar como uma célere solução para julgamento de questões que exigem dinamismo (no máximo em 60 dias) não impede o acesso ao Poder Judiciário.

 

No Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) temos a citação da Justiça Desportiva logo no seu primeiro artigo, ipsis verbis:

 

“A organização, o funcionamento, as atribuições da Justiça Desportiva brasileira e o processo desportivo, bem como a previsão das infrações disciplinares desportivas e de suas respectivas sanções, no que se referem ao desporto de prática formal, regulam-se por lei e por este Código.”

 

Destarte, temos que o próprio CBJD vincula à Justiça Desportiva à aplicação da lei, ocasião em que mesmo sendo desnecessário citar, o EDT é uma Lei Federal com a declaração de Constitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADIN 2937, lei essa que trata especificamente da forma como devem ser feitas as publicações das sentenças desportivas.

 

                                   Assim o entendimento de que ”quando o artigo 1º do CBJD, refere-se à fundamentação legal, o faz com fulcro na Lei federal 9.615/98, nacionalmente conhecida como Lei Pelé” não pode ser admitido. A Lei Pelé foi promulgada em 1998, ou seja, 05 anos antes da criação do Estatuto que ingressou em nosso sistema jurídico em 2003. Como poderia a Lei Pelé excluir da Justiça Desportiva uma legislação que sequer havia sido criada? 

 

Logo a irreverente tese construída (e que prevaleceu) perante o STJD de se preterir o EDT não se sustenta por seus próprios argumentos. Ademais não resiste nem ao próprio dispositivo que regula o funcionamento da Justiça Desportiva, sendo imperioso reconhecer que sistematicamente ao Desporto se aplicam o Códex Processual Civil, o EDT e toda e qualquer outra legislação constitucional que a ele tocar, reforçando a TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES.

 

Não obstante, o artigo 36 da Lei nº. 10.671/03 (EDT) preconiza claramente que SÃO NULAS as decisões proferidas que não observarem o disposto nos Arts. 34 e 35, retro citados. Nesse sentido tem-se claramente que se trata de uma formalidade ‘ad solemnitatem’, que deve ser observada sob pena de nulidade e não ‘ad probationem’ como desejam os membros do STJD considerá-la.

 

Outrossim, ler uma decisão da Corte maior do futebol dizendo que “o Estatuto do Torcedor, diferente do CBJD e da Lei Pelé, não possui qualquer ligação com as partes do processo desportivo não só é ofensivo como denota a desconsideração daquele que é o maior mantenedor do Desporto e o seu principal elemento, O TORCEDOR, cuja ausência ou afastamento das arenas ensejaria o fim de todos os clubes e entidades desportivas. Ademais os torcedores não só podem como DEVEM participar sim do processo desportivo, pois a ele é dirigido o espetáculo, fim teleológico do desporto, e não o contrário! 

 

Indignados com a decisão e provocados pelas polêmicas declarações dos membros do STJD e CBF, reagiram alguns torcedores submetendo a questão ao Poder Judiciário com base no EDT, ocasião em que tivemos toda a sorte de pronunciamentos.

 

Inicialmente na ação ajuizada contra a CBF no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo o Juízo da 40ª. Vara Cível do Foro Central de São Paulo, contrariando o conceito básico do Estatuto do Torcedor extinguiu a ação por entender que o autor, na qualidade de mero torcedor, e “não sendo um representante efetivo e regular do clube, pessoalmente não possui legitimidade para a discussão da matéria em juízo”, pronunciamento, datavênia completamente equivocado uma vez que o EDT em seu artigo 2º diz claramente que “Torcedor é toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva”. Logo pertencer ou não a uma torcida organizada da entidade desportiva não é e nunca foi requisito de legitimidade para se ingressar em Juízo.

 

Na sequência tivemos outras ações, por meio das quais surgiam várias liminares para a inclusão da LUSA na série “A” e outras para que continuasse o campeonato da forma como está em sintonia com a decisão do STJD. Curiosamente no Tribunal Bandeirante tínhamos as decisões favoráveis a mudança do Campeonato e no Carioca a sua manutenção.

 

Diante dessa dualidade foi suscitado junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) conflito positivo de competência (CC 132402 SP 2014/0028913-0) a fim de unificar em um só Tribunal o julgamento da questão. Nessa oportunidade, curiosamente, a CBF que vinha sustentando que o torcedor não era legitimado para ingressar com ação judicial como também que não haveria interesse de agir, se valeu da ação promovida por torcedor com base no EDT para se pronunciar pela concentração, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

 

Paralelamente o Ministério Público do Estado de São Paulo com sua típica legitimação por se tratar de ofensa à direito difuso e coletivo propôs por intermédio de sua Promotoria de Direitos do Consumidor uma Ação Civil Pública contra a CBF, atitude que recentemente[1] também foi protagonizada pelo Parquet Carioca requerendo o afastamento de toda a diretoria em virtude de outros mandos e desmandos, qual seja, a deliberação por alteração legislativa da Entidade que atribui maior peso nos votos das federações em detrimento dos clubes quando de suas votações, o que fere - em tese - a isonomia na gestão democrática do futebol.

 

O Ministro Relator do STJ encarregado de analisar o Conflito de Competência, Sidnei Beneti, após analisar o pleito entendeu que ”É competente o Juízo do local em que situada a sede da entidade organizadora de campeonato esportivo de caráter nacional para todos os processos de ações ajuizadas em vários Juízos e Juizados Especiais, situados em lugares diversos do país, questionando a mesma matéria central, relativa à validade e à execução de decisões da Justiça Desportiva, visto que a entidade esportiva de caráter nacional, responsável, individual ou conjuntamente com quaisquer outras entidades, pela organização (no caso, a CBF), deve, necessariamente, inclusive por decisão de ofício, integrar o pólo passivo das demandas, sob pena de não vir ela ser ser ela atingida pelos efeitos subjetivos da coisa julgada, e de tornar-se o julgado desprovido de efetividade.” 

 

Nesse sentido asseverou que no caso em apreço a competência era da 2ª Vara Cível do Foro Regional da Barra da Tijuca, a qual “devem incontinenti ser enviados os processos, excetuada a hipótese de extinção, estendendo-se o julgamento do presente Conflito a todas as ações sobre a matéria, ajuizadas ou que o venham a ser, nos diversos Juízos e Juizados Especiais, da Justiça Estadual ou Federal no país.”

 

Entendeu o STJ, portanto que em matéria de foro competente para discutir decisão do STJD em ação movida por torcedor os Artigos 94 e 100, IV do anterior CPC preterem o Artigos 3º da Lei 10.671/03 (EDT) e 101, I da Lei 8.078/90 (CDC) que preconizam ser o foro competente para se propor a ação aquele do domicílio do torcedor/consumidor. 

 

Não obstante houve um caso extremamente curioso que merece destaque. 

 

Após a decisão do STJ sobre o conflito de competência houve uma nova ação proposta por um torcedor em São Paulo (3ª. Vara Cível do Foro da Penha) na qual a MM. Juíza não só recebeu a ação como também deferiu a liminar.

 

Segundo consta dos relatos da época a CBF foi informada sobre a liminar com antecedência e a Lusa aguardava manifestação oficial sobre a possibilidade ou não de jogar a partida[2], contudo a Confederação alegava que não havia recebido a informação[3], apesar de divulgada pela mídia, e que só o então presidente da entidade, José Maria Marin, poderia recebê-la para a produção efetiva de seus efeitos e fins de manifestação oficial do órgão.

 

Ameaçada de responder em processo crime por descumprimento de ordem judicial pelo Torcedor que obteve a liminar, um dos Dirigentes da Portuguesa Marcos Rogério Lico(filho do Presidente Ilídio Lico), foi pessoalmente até a arena desportiva e, aos dezesseis minutos da primeira partida da Lusa na série “B” contra o Joinville em Santa Catarina, após entregar o documento que seria a ordem exarada pelo Juízo Paulista  ao Delegado da Partida, chamou o técnico para retirar os jogadores da Lusa de campo, para  que, segundo consta, não se desobedecesse a ordem da Juíza, da qual havia tomado ciência.

 

Detalhe: o árbitro da partida, Marcos Andre Gomes da Penha, sequer inseriu na súmula a informação da liminar[4] narrando o episódio como um abandono de Campo, ipsis verbis:

 

"Aos 17 (dezessete) minutos do 1º tempo, no instante que a partida se encontrava com o placar de 00 x 00, após a marcação de um tiro lateral a favor da equipe do Joinville E.C., subitamente, todos os jogadores da equipe da A. Portuguesa de Desportos abandonaram o campo de jogo, estando a partida paralisada, indo diretamente para o seu respectivo vestiário. Diante dos fatos, solicitei ao 4º árbitro, Sr. Paulo Eduardo Vieira Areas que se dirigisse ao vestiário da A. Portuguesa da Desportivos, acompanhado do delegado da partida, Sr. Laudir Dermini, para que solicitassem o regresso da mencionada equipe ao campo de jogo. No local, foram recebidos pelo Sr. Marcos Rogério Lico RG 12894062-1. O qual se identificou como representante (trecho ilegível) e única pessoa autorizada a falar. O referido dirigente informou-lhes que a equipe da A. Portuguesa de Desportos não regressaria de forma alguma ao campo de jogo. Decorridos 30' (trinta) minutos após a interrupção, da partida, ocasionada pelos fatos supramencionados e com a não reapresentação de nenhuma (trecho ilegível) da A. Portuguesa de Desportos, informei ao Sr. Rafael Ditto de Souza, atleta Nº 4 da equipe do Joinville EC que sua equipe poderia se retirar de campo, haja vista que não haveria prosseguimento a partida por ter a equipe da A. Portuguesa de Desportos se recusado a continuar jogando-a.”

 

Mostrando grande agilidade, o Ministro Sidnei Beneti, em pleno data em que se comemora o “Sábado de Aleluia”, momentos após o imbróglio ocorrido na arena Joinville, por volta das 19h00 profere manifestação sobre a liminar cassando-a[5].

 

Diante desse fato o Procurador-Geral do STJD, que na época também enfrentava polêmica sobre a validade de seus atos e a possibilidade dele continuar a exercer a função em virtude de aparente violação do Código Brasileiro de Justiça Desportiva de 2009 (art. 21) e da Lei Pelé (art. 55)[6],  aventou o rebaixamento da Lusa para a série “C” e denunciou o fato focando dois artigos do CBJD: 

Art. 205. Impedir o prosseguimento de partida, prova ou equivalente que estiver disputando, por insuficiência numérica intencional de seus atletas ou por qualquer outra forma.

 

Art. 231. Pleitear, antes de esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva, matéria referente à disciplina e competições perante o Poder Judiciário, ou beneficiar-se de medidas obtidas pelos mesmos meios por terceiro. (destaque nosso)

 

 

Diante desse fato, prezado(a) leitor(a), quem ao seu ver estaria errado no episódio de Santa Catarina? Seria o torcedor que procurou o Judiciário? Ou a Magistrada que concedeu uma liminar havendo uma determinação da Corte Superior para que a questão somente fosse analisada pelo TJRJ? Podemos também responsabilizar o representante do Clube que tomando ciência da ordem judicial retirou, ad cautelam, a equipe de campo sob ameaça do torcedor impetrante da Ação? Ou todos devem pagar pela ousadia?

 

O STJD não teve dúvidas que foi a Associação Portuguesa de Desportos, por cumprir uma liminar obtida por um torcedor embasado no EDT, culpada pelos fatos ocorridos.

 

Após mais de 04 horas de julgamento a 5ª. Comissão Disciplinar do STJD determinou que os três pontos da partida pela série B deveriam ir para o Joinville e não obstante houve multa de R$ 50 mil a Lusa, R$ 100 mil ao Presidente do Clube, R$ 80 mil ao filho do Presidente (Marcos Rogério), além da  suspensão por 04 jogos do técnico do clube (Argel) e por 240 dias o Presidente da Entidade desportiva (Ilídio Lico), sem prejuízo da aplicação do Artigo 69-2 do Código Disciplinar da FIFA em virtude de ter ocorrido o “beneficiamento” por medidas ocorridas na Justiça Comum.

 

Diante dessa decisão é inimaginável na cabeça de uma pessoa mediana (bonus pater familiae) que em pleno ano 2014 existisse punição vigente da CBF/FIFA à um clube que eventualmente cumpra uma ordem judicial, que supostamente o beneficiaria em virtude de uma decisão proferida num processo movido por terceiro! 

 

Baseados nessa pitoresca previsão pensemos em uma hipótese de um Juiz de Direito conceder uma liminar com base no Estatuto do Torcedor para que uma partida de futebol não ocorra em uma dada Arena por problemas de segurança, determinando a realização do jogo em outro estádio comunicando o fato aos clubes e a entidade de organização da partida. Com base no CBJD (art. 231) e no Código Disciplinar da FIFA (artigo 69-2) os clubes, salvo ordem contrária da CBF, deverão ignorar o decisium sob pena de serem punidos pelo STJD! 

 

É nesse sentido que se entristece o torcedor e o cidadão brasileiro, pois independentemente do que ocorreu com o clube “a”, “b” ou “c”, ao nosso sentir, o pano de fundo que tivemos foi o da aparente manipulação das normas em detrimento das garantias dos Torcedores, distorção essa, que confere a uma Resolução do Ministro do Esporte (CBJD), axiologicamente, força para se preterir uma Lei Federal ou mesmo a teoria da estrutura hierárquica piramidal de Hans Kelsen, uma das primeiras lições que aprendemos no curso de Direito.

 

Ademais, desse episódio podemos concluir que:

 

1º - tanto na CBF quanto no STJD o Estatuto do Torcedor é tido como algo que ”não possui qualquer ligação com as partes do processo desportivo”;

2º - o EDT apesar de viger há mais de 14 anos não é conhecido pela população, por advogados e, pelo visto, por alguns magistrados diante do que fora descrito em suas decisões;

 

3º - a celeridade e mobilização do Poder Judiciário para se cassar liminares (algumas em pouquíssimas horas a sua divulgação) não se vislumbrou para o julgamento do mérito das ações propostas pelos torcedores que continuaram tramitando sem perspectiva do julgamento, tão pouco a ACP proposta pelo Ministério Público, de tal sorte que o objeto das lides foi severamente prejudicado pelos efeitos nefastos da inaplicabilidade imediata do EDT na ocasião em que os fatos se deram;

 

4º - doravante 2014 para se invocar violação de direito de torcedor em face de conduta da CBF/STJD o torcedor deverá suportar o ônus de ir ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, perdendo a sua prerrogativa de foro;

 

5º - a CBF e o STJD ao punirem clubes que supostamente “se beneficiem de decisões judiciais obtidas por terceiros” revelam a “ditadura do desporto brasileiro” afrontando a Ordem Social Brasileira, o Princípio da Universalidade do acesso à Jurisdição (Art. 5º, XXXV CF), o Poder Judiciário bem como a efetividade de suas decisões, em virtude da  aplicação de regras inconstitucionais punindo clubes que eventualmente, desautorizados pela CBF, observem e ousem cumprir uma ordem judicial; e enfim:

 

6º - Foram atacadas e duramente atingidas as prerrogativas dos torcedores, mostrando que o Estatuto só vale quando não afronta interesses outros.

Enfim, agradecido pelo convite proferido a este subscritor para redigir artigo a ser publicado na nobre revista da gloriosa Escola Superior da Advocacia Bandeirante, não poderia me furtar de relatar esse que foi, ao nosso ver, um preocupante precedente resultante de seguidas afrontas ao Estado Democrático de Direito no Brasil, o qual esperamos ver um dia superado por nobres, novos e sóbrios argumentos a fim de que sejam efetivados os direitos e garantias insculpidos, com muitos esforços, na famigerada Lei nº. 10.671/03 que visa acima de tudo, respeito, transparência e isenção na administração das práticas desportivas.

*texto publicado na revista de Direito Desportivo da Escola Superior da Advocacia da OABSP*


 

[1] In https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/noticia/2017/07/ministerio-publico-pede-afastamento-da-diretoria-da-cbf-9851569.html acessado em 20/08/2017.

[2] Disponível em http://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,portuguesa-cumpre-liminar-e-abandona-o-gramado-em-joinville,1155798 acessado em 20/08/2017.

[3] Disponível em http://espn.uol.com.br/noticia/404347_liminar-poe-lusa-de-novo-na-serie-a-e-clube-comunica-cbf-que-nao-jogara-estreia-da-segundona acessado em 20/08/2017.

[4] Disponível em https://esporte.uol.com.br/futebol/campeonatos/brasileiro/serie-b/ultimas-noticias/2014/04/22/juiz-de-joinville-x-portuguesa-ignora-liminar-em-sumula-publicada-pela-cbf.htm acessado em 20/08/2017.

[5] Disponível em http://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,cbf-recorre-ao-stj-e-consegue-cassar-liminar-de-torcedor-da-portuguesa,1156118 acessado em 20/08/2017.

[6] Disponível em https://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2014/02/05/situacao-legal-de-procurador-geral-coloca-em-xeque-atuacao-de-stjd.htm acessado em 20/08/2017.

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